terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Entrevista com Muricy Ramalho: "Eu te amo, futebol"


Assim como seu mestre Telê Santana, Muricy Ramalho também é um apaixonado pelo futebol. Em entrevista ao site Globoesporte, o técnico fala do início do romante com o esporte, da carreira de jogador, mas confessa que às vezes pensa na aposentadoria por um amor maior: a família. Confira na íntegra a matéria.


Já ouvimos você falar algumas vezes que te dá prazer uma boa conversa sobre futebol e o quanto você gosta deste esporte. É uma paixão comum a todo brasileiro, mas para você, especificamente, quando teve início?

Foi com meu pai. Ele adorava futebol, tinha amigos no meio profissional, e os caras iam na minha casa. Tipo, Ademir da Guia, esses caras famosos. Meu pai era palmeirense e me levava aos jogos do Palmeiras no Pacaembu. Nem existia o Palestra Itália. Fazia churrascos lá em casa com jogadores. Assim, comecei a gostar. Despertou o interesse pelo negócio.

E nas ruas? Você era muito peladeiro?

Jogava o dia todo na rua, descalço, cortava o pé toda hora. No meu tempo era difícil, não era como hoje. Não tinha calçado, tênis adequado. Meus pais tinham que me chamar, senão nem volta para casa. Não tínhamos muito divertimento, não tinha negócio de cinema, nada. A diversão era jogar bola no bairro, na rua. E eu ficava o dia todo fazendo isso.

O Tata (auxiliar técnico) até já contou a história de que vocês eram adversários, jogavam um contra o outro...

É. Era time de rua contra rua. Disputavam a flâmula. Hoje nem existe mais isso. Ele era de um bairro próximo. Conheço o Tata desde garoto.



E já nessa época havia o desejo de ser jogador?
Eu queria. Quando me levaram para escolinha do São Paulo, eu tinha nove anos, e comecei a competir. Isso é que desperta: quando começa a disputar e a ganhar, a querer ganhar. É assim o ser humano. Meu tio foi quem me levou, e gostei do negócio. Fui aprovado e passei a jogar campeonatos. Foi quando tive certeza de que meu futuro era ser jogador.


Você é um cara que prega o trabalho, é muito obstinado, perseverante. Mas nesse período da escolinha até ser jogador, pensou em desistir alguma vez?

Não pensei em desistir, mas algumas vezes parava de treinar. Eu tive um problema com um treinador argentino, o (José) Poy. Depois ele virou meu amigo, aí é que eu fui entender o cara. Eu tinha cabelo muito grande, vinha nas costas, e ele mandava eu cortar, achava que não podia jogar assim. Eu respondia: “Não vou cortar, não, meu”. Ele dizia: “Então, você não vai treinar”. E eu ia embora. Aconteceu isso umas cinco, seis vezes. Eu falava com meu pai: “Esse cara está me enchendo o saco”. Ainda tinha que acordar cedo para treinar, o futebol para quem está começando é difícil. Pô, acordava cedo e ainda tinha que ir embora? Mas aí ele me deu uma oportunidade e acabou isso. Mostrei que tinha condições. Outro momento difícil foi a contusão que tive em 1977, quando com certeza ia ser convocado para a Copa do Mundo (de 1978, na Argentina). Tive esse problema e fiquei fora. Aí, sim, quase que parei. Não tinha essa operação que tem hoje, que é mais moderno e rápido. Agora, desistir de tudo nunca tive vontade.

Você começou na escolinha muito cedo, e fala-se muito que a parte competitiva tira o romantismo do futebol. De alguma forma você procurava manter isso dentro de você? Mesmo já treinando, mantinha vivo o lado torcedor?

Eu morava perto do Morumbi e ia ver jogo. Não era um baita torcedor, mas gostava de ver jogo. Eu era sócio do São Paulo. No meu tempo, o Morumbi não era todo fechado e redondo como hoje. Na parte do clube, ele era aberto. E a gente ia pro morro ver os clássicos, que eram todos lá. Eu gostava de ver o Pelé jogar. O Santos ia jogar e eu ficava enlouquecido. Tudo do morro, não entrávamos no estádio. Então, víamos o Pelé, o Rivelino quando o Corinthians vinha. E esses caras eram muito famosos. Hoje em dia se encontra os jogadores toda hora, mas antigamente não era assim. Essa era minha paixão. Depois, descia pelo elevador para ver esses caras importantes passarem. Fui criado nesse meio.

Você ainda vive no futebol, mas há muita diferença dessa época para o Muricy de hoje, até mesmo da época de jogador. Do que você mais sente falta?

Sinto muita falta da liberdade. Eu nasci em um bairro de gente humilde em São Paulo, onde as pessoas sentam na calçada para comer churrasco, essas coisas, e sinto falta. No fim do ano passado consegui fazer isso. Meus amigos são todos de Pinheiros e todos os sábados há um encontro, se juntam num bar na calçada... Em 2010 eu apareci de surpresa. Eles ficaram enlouquecidos. É isso que sinto falta, de ser mais varzeano, da várzea. Mas no que faço tem que ser muito profissional, correto, estudar... Isso me tira muito da vida que eu gosto. Sou um cara de hábitos simples. E é dessa simplicidade que sinto falta.

E de jogar você sente falta?

Não. Isso, não. Podia jogar nas brincadeiras da comissão, mas não jogo. Até pela idade. Começamos a nos machucar muito. Tenho 55 anos, tive problema de joelho e não tenho muita vontade.

Como é sua ligação com o futebol fora do trabalho? É um cara que vê muitos jogos na TV?

O tempo todo. Vejo jogos diariamente. Qualquer um. Vejo a A-2 de São Paulo, que é muito boa, tem o time em que meu filho é estagiário (o Paec). Vejo jogo para caramba. E tenho que ver, né? Tenho que estar atento. Na Europa, gosto do futebol inglês, que é onde estão os melhores do mundo, e do Barcelona, que é o melhor time do mundo, por ter o Messi e aqueles caras todos. Mas vejo futebol o dia todo. Agora, por exemplo, tenho visto a Copa São Paulo.

Para quem jogou, assiste, torceu e trabalha com futebol, queria que você listasse os cinco maiores que viu jogar?

O Pelé é o intocável, é o fera de todos. Mas o mais completo foi o Zico. Todos são craques, o Rivelino, por exemplo, mas o Zico era as duas pernas, o drible, o cabeceio - a despeito da altura -, a bola parada era perfeita. Foi um cara completo. Vi muitos, mas não como ele. Mas o Ademir da Guia também era um monstro. O Gerson eu consegui pegar o finalzinho da carreira. O Pedro Rocha, que na década de 70 esteve entre os 10 maiores do mundo e tive a felicidade de jogar com ele. São esses caras.

E dos que você comandou? Quais cinco mais te impressionaram?

Ah, o (Rogério) Ceni era um. Ele eu conheci desde moleque e é meu amigo particular até hoje. Foi um dos profissionais mais corretos que vi. Como se cuida, treina e quer ganhar, vai durar bastante ainda. Outro é o Fernandão, que está no São Paulo e tentei muito trazer para o Fluminense. É um cara positivo e muito correto. Trabalhei com o Cafu que era um fora de série, Toninho Cerezo, Leonardo, que era um grande profissional como jogador, corretíssimo. Foi muita gente boa.




Você vem de uma escola do Telê Santana que preza muito a repetição, o treinamento. Acha que com esse tipo de trabalho é possível transformar um jogador ruim em um bom jogador ou o futebol é mesmo talento?

A repetição melhora o jogador. Eu faço muito isso nos treinos. Mas melhora o cara que é bom. Quem é ruim não tem como. Vai dar para melhorar os fundamentos, mas não para transformar em um grande jogador. Talento nasce com a pessoa. Nós ajudamos a melhorar isso: o drible, o passe, o chute... Mas se não tem talento não tem jeito.

 
Hoje em dia o futebol é muito midiático, muito globalizado, muito marketing. Você, que vê tantos campeonatos, enxerga muita “enganação”? Aquele jogador que não é tudo que “vendem”.

(Risos). Não acho assim. Como vejo de tudo quanto é jogo de futebol, acho que há curiosidades. Por exemplo, começou a Série A-2 do Paulista e é importante o treinador conhecer o campeonato. É um futebol diferente. É importante saber identificar isso. Não é qualquer um que joga nessa realidade. Procuro ver o lado bom do futebol. Lógico que há o lado ruim, todo mundo sabe disso. Há time ruim, jogador ruim, mas gosto de ver o lado bom. Por exemplo, não gosto de ver o futebol francês. Acho uma chatice. Todo mundo joga igual, ninguém sai do lugar. Mas em compensação gosto de ver o Messi, que é o melhor do mundo, gosto do Campeonato Argentino, que é uma guerra legal. É isso. Por mais que o campeonato não seja bom, sempre dá para aprender alguma coisa.

Em tanto tempo envolvido com o futebol, qual o momento mais inesquecível que você vivenciou? Aquele que vem primeiro na sua cabeça?

O que marca a todos é o primeiro jogo como profissional. Meu primeiro foi contra o Peñarol no Morumbi. Eu tinha 16 anos. Então, eu sempre concentrava, mas nunca nem ficava no banco. Estavam me preparando para o profissional. Era um amistoso, mas os dois jogadores da posição, o Zé Carlos e o Silva, tiveram problemas, e o Seu Poy, aquele treinador argentino, me chamou e disse: “Olha, você vai jogar”. Eu fiquei até assustado. Não esperava. E só tinha cara fera tanto no São Paulo quanto no Peñarol. Esse jogo eu não esqueço. Entrei e arrebentei. Como todo moleque, era atrevido, irresponsável, joguei demais e nunca mais saí do time.

No meio do futebol atual criou-se até um termo que é a “boleiragem”. Representa aquele cara que fala, se veste e age como jogador. Como se fosse uma espécie de personagem. Na sua época também existia isso?

O jogador hoje realmente virou um personagem. Está sempre com aquele medalhão, o telefone celular na mão... Não sei o que tanto eles falam. A roupa é sempre parecida. É natural da época deles. Eu não era boleirão, mas era meio rebelde. Na minha época, era “Beatles”. Tinha ídolos que queriam mudar o mundo, hippies. Então, eu usava cabelão, usava esses tamancos baianos, bolsa a tiracolo. Não era muito da bola, não era normal do futebol. Só que foi a época de cada um. Eu respeito muito. Não os controlo. Eu sou um técnico sem manias. Deixo para cobrar o cara em campo, senão fico insuportável. Já cobro bastante em campo, não tenho que cuidar da vida do cara, se ele fala, veste, usa brinco... Nisso eu sou light. Quando vamos para concentração, nem procuro saber o andar que os jogadores ficam, não quero ficar vigiando. Responsabilidade o cara tem que ter. Então, acho normal esse estilo boleirão. É normal da juventude querer chamar a atenção. Se você vê um cara na rua, já sabe se é jogador ou não.

 
E tem algum jogador que você conheceu ou comandou que se identifica com o Muricy jogador?

Há algumas características. O Kaká, por exemplo. Eu era muito parecido. Tomava a bola e partia para cima dos caras. Não era muito de controlar jogo. O Zico também. Jogamos muito contra e éramos parecidos. Esse tipo de jogador, que é o meia-ponta-de-lança. Antigamente, o futebol era diferente. Tinha o volante e dois meias, números 8 a 10. No ataque, o 7, 9 e 11. Eu era o 8. Um cara muito agressivo. Driblava muito.

O Conca após o título disse que o Fluminense tinha que te manter por 20 anos. Quando falamos nisso, vemos logo a imagem do Alex Ferguson (técnico do Manchester United há 24 anos). Você se enquadraria nesse perfil de ficar tanto tempo em um clube? Acredita que isso é cabível?

Seria bom, mas no Brasil é difícil. Perdeu, o cara já fica no limite. O futebol tem muito interesse, muita vaidade, muito negócio. E é nisso que eu esbarro muito. Eu não faço acordo com ninguém, sou muito chato em relação a isso. Eu fiquei três anos e meio no São Paulo porque sou raçudo demais. Era cara querendo me derrubar o tempo todo. Comigo não tem negócio, não tem acordo. Seria uma boa, nem sabia que o Conca tinha falado isso. O ideal era mudar o perfil brasileiro, o técnico ter uma continuidade no trabalho. Mas o técnico precisa também saber seu espaço, não querer se meter nos negócios do clube, assumir suas responsabilidades, dar retorno mesmo. É preciso ter o custo-benefício. Ninguém faz nada de graça. Acontecer isso é muito difícil. O Telê ficou cinco anos no São Paulo, achavam que eu ia bater o recorde dele, mas não dá.

Mas é possível ficar tanto tempo e manter a motivação?

Dá sim. O dia em que eu não estiver motivado eu paro. Vivo muito da minha vontade, da minha determinação. Não consigo vir aqui só treinar e ir embora. Por isso que vejo muito futebol, observo outros times. Porque é preciso mudar a rotina. Senão, daqui a pouco o jogador não aguenta mais você. É preciso estar ligado nas coisas, estar satisfeito, contente.

Você coloca algum limite na carreira? Projeta aposentadoria?

Não sei, cara. Minha maior dificuldade é minha família. Isso é que me pega um pouco e me faz pensar em relação a isso. Estou tentando convencer o meu filho mais novo (de 16 anos) a morar comigo no Rio. Os outros dois não tem mais jeito. Um tem 28 anos, o outro (de 21) estuda, namora, e depois ninguém quer saber mais. Mas ele mora na minha casa ainda. Estou tentando trazer a esposa e esse pequeno. Porque é muito difícil ficar longe deles. Esse é o fator que pode encurtar minha carreira.

E há a possibilidade de seguir em outro cargo depois?

Eu até penso. Penso em trabalhar na base, ser um coordenador, ajudar, participar. Sei que é uma área que paga pouco salário, mas é mais mesmo para usar o meu conhecimento. Deviam pagar melhor, por serem os caras que mais trabalham e dão retorno ao clube.

Com tanto tempo envolvido no futebol, queria que você listasse também os três gols inesquecíveis da sua vida?

Tem alguns bons que não esquecemos. Como o Zico é meu ídolo, vi um gol quando ele voltou de uma contusão de joelho, em um amistoso contra a Iugoslávia (em 1986), que ele driblou todo mundo. E estava voltando de contusão. Até o goleiro o Zico driblou. Não esqueço. É um cara que tenho carinho, gosto dele demais. Outro foi o Pelé na Copa do Mundo de 70, que vibrei muito, o dele de cabeça, na final contra a Itália (assista o vídeo abaixo). O outro, deixa eu pensar...

Cite um gol seu...

Ah, um gol meu... Teve um legal. No São Paulo teve um que gosto de lembrar bem porque foi contra o Leão (risos), que é meu amigo. Foi no Pacaembu, em um São Paulo e Palmeiras. Neste jogo, o Leivinha fez primeiro e eu empatei com uma pancada de fora da área no ângulo. Outro legal foi contra o Santos em que vim driblando pelo lado esquerdo, ameacei, o goleiro caiu e toquei no canto dele mesmo. Esses foram legais.

E para escalar do 1 ao 11, qual a seleção do Muricy de todos os tempos?
É difícil. O grande problema é esquecer alguém, mas depois eu posso mudar, né? Então, vamos lá. O Rogério Ceni é o goleiro. Na lateral direita, Carlos Alberto Torres, que é um monstro que vi jogar. Na zaga, Oscar, que foi meu companheiro na Seleção juvenil, e Darío Pereira. Estou falando dos que jogaram no Brasil, porque temos que dar valor para os nossos. Na lateral esquerda, o Roberto Carlos. Para mim, o melhor de todos os tempos. No meio-campo, vou homenagear um amigo que faleceu ano passado, que foi o Chicão. Depois, Pedro Rocha, Rivelino... Outro amigo que é o Chulapa, meu irmão, e que fez gol para caramba. Na ponta, o Garrincha, e, para fechar, o Zico. O baixinho é o 10 e o capitão. O Pelé não conta porque é o maior de todos. Como técnico, o Telê. Mas trabalhei com outros bons, como o Rubens Minelli e o Parreira. Esse foi o maior caráter que vi no futebol. É isso. Essa turma boa aí.



Queria que você falasse sobre sua relação com o Fluminense em si. Você é o chamado típico paulista, rodou pelo Sul, pelo Nordeste... Como via o Rio e o clube de longe?

Quem é de fora tem aquela imagem de que o Rio é só praia, Carnaval, pouco treinamento. É o que comentam e imaginam. Mas tenho amigos daqui, como o (Sebastião) Lazaroni. Essa é uma impressão falsa que existe. Aqui se trabalha duro e forte. De resto, o carioca é mais light e menos estressado mesmo. É uma coisa normal de cidades com praia. Sobre o clube, realmente foi tudo que me passaram. Disseram: “Você vai para um lugar duro de trabalhar”. E quando cheguei os treinos eram na Portuguesa. Aí, pensei: “Pô, meu, olha onde eu vim parar”. Comentei com o Tata que ia ter trabalho para caramba. Mas as promessas de melhorias me convenceram. Eu queria vir para o Rio por ser um mercado diferente, onde só um paulista tinha vencido e eu queria conquistar. Senão, ia ficar muito marcado por São Paulo.

 
Para fechar, você que é um cara tão ligado ao futebol, se o futebol fosse uma pessoa física e você pudesse falar alguma coisa para ele, o que diria?

(Risos). Eu te amo, né? O futebol é o amor da gente. Primeiro vêm minha esposa, meus filhos, e depois o futebol. Se fosse uma pessoa, eu falaria te amo. É a minha vida. É o que mais gosto de fazer.

Fonte: NETFLU


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